Walt Whitman (1819 - 1892)

Walt Whitman (1819 - 1892)
(...) What do you see, Walt Whitman? Who are they you salute, and that one after another salute you? (...)

4 de junho de 2010

Hélia Correia e o seu último romance "Adoecer"



Fotografia de Graça Sarsfield

Escritora portuguesa contemporânea (1949), licenciou-se em Filologia Românica e é professora de Português do Ensino Secundário. Apesar do seu gosto pela poesia, é como ficcionista que é reconhecida como uma das revelações da novelística portuguesa da geração de 1980, embora os seus contos, novelas ou romances estejam sempre impregnados do discurso poético.

Na sua ficção, conflui o reatar de uma herança literária que impõe certa linearidade à escrita romanesca com a assimilação de traços da narrativa contemporânea que vão de um Gabriel García Márquez ou Alex Carpentier até à novelística de Agustina Bessa-Luís, numa tendência para surpreender o sobrenatural no quotidiano da vida provinciana e burguesa, ou para transpor para a escrita romanesca o plano em que a dimensão social das relações humanas se cruza com a religiosidade, com a superstição e até com o irracional.

Nos seus primeiros romances, predomina como tema a ascensão social em meio rural, protagonizada por personagens contraditórias nos seus actos, movidas por instintos e crenças, e cujo percurso acaba por pôr em causa uma realidade que se revela frustrante relativamente às suas expectativas.
Sobressai ainda no estilo de Hélia Correia a atenção ao poder encantatório da palavra oral, numa escrita que parece contaminada quer pela palavra poética, quer pela tradição do conto popular.

in Jornal de Letras

Estreou-se na poesia com O Separar das Águas, em 1981, e O Número dos Vivos, em 1982.

A novela Montedemo, encenada pelo grupo O Bando, dá à autora uma certa notoriedade. Aliás, Hélia Correia revelou, desde cedo, o gosto pelo teatro e pela Grécia clássica, o que a levou a representar em Édipo Rei e a escrever Perdição, levadas à cena, em 1993, pela Comuna. Escreveu também Florbela, em 1991, que viria a ser encenada pelo grupo Maizum.

Destacam-se ainda na sua produção os romances Casa Eterna e Soma e, na poesia, A Pequena Morte/Esse Eterno Conto.

Recebeu em 2002 o prémio PEN 2001, atribuído a obras de ficção, pela sua obra Lillias Fraser.


Bibliografia:


Adoecer 2010 Relógio D` Água

Contos de Vampiros 2009 Porto Editora

A Coroa de Olímpia 2008 Relógio D` Água

Contos Policiais 2008 Porto Editora

A Ilha Encantada 2008 Relógio D` Água

Perdição 2007 Relógio D` Água

Desmesura 2007 Relógio D` Água

Soma 2006 Relógio D` Água

A Casa Eterna 2005 Relógio D` Água

Bastardia 2005 Relógio D` Água

Fascinação Seguido de A Dama Pé-de-Cabra 2004 Relógio D` Água

Mopsos - O Pequeno Grego 2004 Relógio D` Água

Lillias Fraser 2001 Relógio D` Água

Montedemo 1998 Relógio D` Água

O Número dos Vivos 1997 Relógio D` Água

A Casa Eterna 1991 Dom Quixote

A Luz de Newton 1988 Relógio D` Água

Montedemo 1987 Relógio D` Água



Adaptado de artigo da revista Visão - visao.pt/adoecer-de-helia-correia.


Mas é do seu último romance Adoecer que eu gostava de vos falar hoje pois tem uma ligação muito forte com o meu Arquivo de ontem sobre Dante Gabriel Rossetti e os Pré-Rafaelitas.

No primeiro capítulo do livro a escritora faz a biografia de Elizabeth Siddal, a modelo e também pintora e poetisa.
"(...)Uma mulher que ousou a diferença e viveu sem os espartilhos do tempo, na segunda metade do século XIX e que intrigou a sociedade vitoriana com a estranheza da sua relação amorosa com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti. Um enigma até hoje de que Hélia correia conhece o segredo. Tanto quanto é detentora do segredo da Literatura.
Era, de resto, muito antigo o conhecimento de Hélia Correia sobre Elizabeth Siddal, em que se reconhece completamente. Foi um conhecimento travado em torno de uma imagem do célebre quadro de John Millais, Ofélia, em que Siddal, a lizzie do magnífico Adoecer posou. E a partir dessa pintura, a escritora empreendeu uma demanda da modelo, que foi também um mergulho no século XIX inglês, no universo dos pré-rafaelitas e das pré-feministas.(...)"

Excerto do primeiro capítulo do livro:

Adoecer, de Hélia Correia

Highgate Cemetery, 2005

Se a pátria assinalar uma pessoa como um cão assinala um candeeiro, a minha condição de portuguesa transporá os portões antes de mim e uma espécie de aviso subirá, fazendo com que as aves estremeçam.
A lembrança do outro português que uma noite aqui veio abrir a campa pode ser acordada pelos meus passos? Conhecerá a terra o parentesco que liga a minha carne à carne dele, uma composição de sol e enchidos, de subserviência e fantasia?
Esta não é a hora das visitas. Erguendo os olhos para a subida, vejo que a hostilidade do lugar levanta, exactamente como um nevoeiro. Precisa de repouso, a terra, e engana-se, supondo que fechou a sua entrada. No interior do círculo, estou eu. Passo furtivamente, receando que alguma identidade, não a minha, mas a do meu país, informe os mortos.
O tempo andou aqui com o seu peso, esmagou, quebrou os selos. As encostas abriram fendas. E os caminhantes que parecem rezar dizem apenas em voz baixa a si próprios que a camada do solo superior ainda os protege, ainda isola os seus pés. Que não há perigo de comunicação.
O que está lá no fundo é transtornado pela luz, pelo ar onde circulam pequenas formações da biologia.
Os roedores conhecem com certeza modos de comportar-se quando encontram esse súbito vácuo.
Mas nós não. Um piedoso corte quebra a linha que vai dos olhos para o pensamento.
E os turistas refugiam-se no grupo, amparam-se no braço do vizinho, antecipando algum desequilíbrio.
Há um princípio de obscenidade que logo se recolhe sobre si.
Se falam sobre Drácula, já baixam ligeiramente a voz. Mas incomodam. Têm um calor próprio, uma espantosa intensidade metabólica. Interpõem-se. Por isso eu espero que eles se retirem, que tomem o caminho para a vila, levando tudo o que não quero aqui, a carne, os seus recursos de alegria.
Eu venho a um encontro pessoal, desses que não consentem testemunhas. Na verdade, conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde teve as mãos. Dormi junto a lugares onde dormiu. Nada dela me é estranho. De algum modo, as nossas vidas já se confundiram pois o tema do duplo, o doppelgänger, estava inscrito em nós como um padrão. Se subo agora o matagal da encosta não é porque me falte o seu horror.
É que, tornando-se isto numa história, precisarei de uma noção de fim.(...)"

Adaptação de Artigo do Jornal Publico http://ipsilon.publico.pt/livros/entrevista.aspx

Dá vontade de não parar de ler não dá? Mas contextualizemos:

Estamos em meados do século XIX, na Inglaterra vitoriana. No espírito das ruas, uma sociedade moralista, retrógrada, machista. E no seu mais palpável do viver, uma realidade salobra, em que as cidades conheciam inúmeros problemas de saúde pública. Nascer e viver não seria, nesses tempos, coisa fácil. Elizabeth Siddall nasceu numa família de parcos recursos e, enquanto mulher, votada à nascença a um destino de mera sobrevivência. Não fosse a sua beleza, não fossem os seus fulgurantes cabelos ruivos, não fosse certo dia um jovem pintor, William Alingham, tê-la descoberto numa chapelaria e ter-se por ela encantado; como se por magia. Não por tê-la achado excepcionalmente bela, antes por nela ter reconhecido os traços de uma “changeling”: «… não podia ignorar o encontro.»

Convidada a posar para ele como modelo, a jovem iniciaria aí um seu percurso de ascendência social, subtraindo-se ao meio onde por sorte nascera. Do mesmo modo, nesse exacto instante iniciaria uma caminhada de tragédia:
«Uma terrível história começava e ele seria o instrumento do começo.»
Foi a história desta mulher invulgar que, desde o momento em que a viu há já algumas décadas, no imediato, igualmente como que por encantamento, cativou Hélia Correia. Durante anos, a escritora efectuou viagens diversas a Inglaterra seguindo, a par e passo, todos os caminhos e lugares que Lizzie percorreu.
Num trabalho quase detectivesco, acompanhado por apurada pesquisa documental, Hélia foi-se, deste modo, imbuindo do ser e sentir daquela mulher por todos incompreendida, por todos temida e que, contraditoriamente, a todos atraía. A identificação com a personagem/ mulher é óbvia e, de resto, assumida: «Na verdade, conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde teve as mãos. Dormi junto a lugares onde dormiu. Nada nela me é estranho.»

Foto de flickr.com

E não é, em absoluto! De uma forma espantosa, a autora reinventaria todos os seus passos e percursos. Vale-se de factos, aqui, permite-se a algumas efabulações e liberdades ficcionais ali. Biografia, sim, mas ao contrário dos biógrafos profissionais, sem «os pulsos amarrados». Ou seja, bem mais importante do que os meros factos, e por via de um trabalho de osmose, coloca-se por dentro da personagem, veste-lhe a alma, é-lhe por dentro.
Algo que opera, diga-se, não apenas relativamente a Lizzie, mas também para com as outras personagens, desta forma, mais concorrendo para perceber a essência de Lizzie. Diria mesmo que, além de lhe interessar contar a história de amor neurótico («neles a sexualidade parecia expurgada de raiz») vivida entre Lizzie Sidall e Gabriel Dante Rossetti, mais terá interessado a Hélia Correia verdadeiramente perceber aquela mulher que «tinha um corpo selado na tragédia» e entender, se possível fosse, a «história de uma barbárie e dos seus utores», história que «acaba mal e não começa bem» como escreve a páginas tantas, a partir daquele episódio inicial em que Lizzie é pintada por Millais enquanto Ofélia, «qualquer coisa de Ofélia se alojara definitivamente no seu corpo».
Recorde-se que, posando horas a fio dentro de uma banheira aquecida por lamparinas, quando estas, gastas, se apagaram, Lizzie ali permaneceu na água fria não querendo perturbar o trabalho do pintor, acto que lhe valeu um valente resfriamento, primeiro sintoma de uma vida pautada pela doença.

Proserpine (Oil on canvas, 1874) - Tate Britai...
Foto de flickr.com
 

 
Beata Beatrix (circa 1864-70), um retrato da Beatriz de Dante Alighieri (1265-1321), por Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), que usou como modelo Elizabeth Siddal (1829-1862), a Lizzie do livro Adoecer, de Hélia Correia.


E pela doença vamos, explicitando um pouco o título do livro. Se na realidade a doença marca o corpo de Lizzie ao longo da sua atormentada e breve existência, a verdade é que a sua doença era sobretudo da ordem do psicológico. Aquilo que percepcionamos é que a sua vinda a este mundo estava desfasada do tempo; Lizzie era como que um alma que regressara à vida com o mero intuito de ir ao reencontro da sua alma gémea, Dante Gabriel («O mito do eterno reencontro dos amantes que encarnam noutros corpos e que, sem escolha, iguais a condenados, começam novamente a sua história, cabia ali, como uma obra da paisagem»).
Só que nada se repete. Apesar de se reencontrarem, de se reconhecerem de um mundo e vivência outra, os dois amantes estabelecem uma relação convulsa, marcada pela morte e por um qualquer desajuste com o mundo à sua volta.
É bem verdade que Dante Gabriel a toma por musa e, a exemplo dos seus companheiros pré-rafaelitas, a incita a emancipar-se (numa atitude, entre outras, precursora dos ideais socialistas futuros), é bem verdade que vive com ela, a ensina a pintar e a escrever, mas não menos certo é que, apesar de tudo e do incomensurável que os ligava, toda a sua relação será marcada e votada a uma estranha maldição, como se o sofrimento lhes ficasse bem. Daí que Lizzie, mais do que adoecer, quase desejasse adoecer, nela combinando «a condição de morbidez» auto-induzida.

É todo esse processo decantatório rumo à perda que Hélia Correia romanceia, ao mesmo tempo que nos adentra no pulsar da vivência vitoriana, e particularmente no ar de uma Londres à data profundamente «estratificada». Pelo caminho, acodem múltiplas personagens que ao longo dos anos foram gravitando em torno do misterioso casal, filtrando ainda lugares e pequenas estórias dentro da história. Sublime no dizer, no construir de cada frase, Hélia como que verte à escrita um tempo (e uma vida) que ela mesma tivesse respirado.

A história começa com a descrição da sua chegada ao cemitério de Highgate, onde Lizzie está sepultada ao lado do pai de Dante Gabriel, retrocedendo depois ao início, a finais de 50 do século XIX e seguindo então cronologicamente até à morte de Lizzie, em 1862, para terminar com o episódio da exumação do seu corpo a fim de se recuperar o inédito e único exemplar do livro de poesia de Dante Gabriel, «House of Life», que o pintor-poeta depositara junto aos seus cabelos sete anos antes.

Foto de flickr.com
Fiquei muito contente quando encontrei este livro! fantástica coincidência...O trabalho de Hélia Correia neste livro e a minha "paixão" pelas aventuras dos pré-rafaelitas!
Nunca pensei que uma escritora portuguesa fosse pegar neste tema. A não perder!



Boas leituras! até breve Tágide.





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1 comentário:

  1. O Adoecer está intenso, a escrita de Hélia Correia é lindíssima. Parabéns pelo blog!

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